Tuesday, January 15, 2013

Minha Tia Juliana



Numa casa de sete mulheres, mamãe foi a única a se casar. Até hoje não entendi muito bem se ela considerava seu destino mais bem-aventurado do que o de suas irmãs. O que eu sim pude entender, desde muito cedo, é que mamãe nunca olhou com muitos bons olhos o fato de ela ter nascido numa família tão grande. Talvez seja por isso mesmo que mamãe tenha se mudado tão jovem da casa do vovô e da vovó; ela tinha dezessete anos na época, se não me engano. Cansada da vida pacata da fazenda no interior do Paraná, onde ela dividia parte dos afazeres domésticos e do campo com suas seis irmãs, mamãe se mudou aqui para o Rio de Janeiro. E foi aqui que ela conheceu papai. E foi aqui que eu nasci.

Mamãe sempre deixou claro que ela só queria um filho, e papai nunca ofereceu muita resistência. Então, quis minha mãe e o destino que eu fosse filho único, criado em cidade grande, que eu estudasse no melhor colégio do Rio, que eu tivesse aula de inglês desde os meus 2 anos de idade, que eu nunca tenha tido jeito para andar a cavalo, que eu nunca tenha tirado leite de uma vaca, que eu adorasse brincar de esconde esconde no condomínio com meus amigos, que eu soubesse tocar violino, que eu me tornasse quase um expert em teatro, que eu não tivesse um cachorro de estimação, e que eu passasse onze meses de cada ano ouvindo sons de carros, buzinas e sirenes.

Mas por um mês, um mês inteirinho, a cada ano, eu me sentia o melhor amigo do rei. Lá no interior do Paraná, onde meus avós viram todos os seus dias, até o último dia; lá, onde minhas seis tias ainda seguiam com os afazeres da fazenda de nossa família; lá era o meu lugar por 31 dias de cada ano.

Dezembro sempre era mês alegre na fazenda. Depois de um ano inteiro conversando apenas por cartas com as minhas seis tias, depois de contar os meses, dos dias e as semanas, depois de 334 cafés da manhã na cidade, eu finalmente podia regressar ao meu cantinho preferido do meu mundo de então.

Durante um mês eu era disputado pelas minhas seis tias. Minha mãe sempre dizia que eu voltava cada vez mais folgado e mal criado das minhas férias no campo. Eu nunca concordei. Eu sempre voltei mais rico e alimentado da vida de cada uma dessas seis mulheres, solteiras, maduras, sozinhas, tão cheias do que compartilhar, tão privadas de pessoas com quem compartilhar.

Cada uma tinha seu jeito peculiar de me tratar, e seu jeito de me encantar. E cada uma delas descobria um pedacinho de mim que por onze meses por ano insistia em dormir. Tia Clara adorava cozinhar e nossa vida sempre foi na cozinha. Tia Joana sempre insistiu que eu tinha nascido para os serviços da fazenda, e sempre me levava para ver a criação. Tia Dorvalina gostava de me ver tocar violino e de ouvir minhas histórias do conservatório, do teatro, e dos filmes que tinha assistido no cinema. Tia Ludimila queria sempre saber se eu já tinha beijado alguma menina, e se as meninas do colégio eram bonitas; para ela a minha vida era uma novela. Tia Lourdes insistia que queria aprender inglês comigo, e que um dia ela ia morar nos Estados Unidos; suspeito, entretanto, é que ela só insistia em nossas aulas porque ela achava que aquilo me entretinha. Tia Juliana.... hmm... Tia Juliana quase nunca me dizia nada.

Eu nunca soube explicar o por quê, mas Tia Juliana sempre foi a minha tia preferida. Ela, entretanto, sempre foi acusada pelas suas irmãs, inclusive mamãe, de fazer pouco caso da minha estadia na fazenda. Maior injustiça contra minha Tia Juliana não poderia haver.

Tia Juliana sempre me enxergou mais a fundo, e com mais atenção do que todo mundo que eu já conheci. Do pouco que ela me falava, e da maneira como ela me olhava, eu, na verdade, penso que ela enxergava até demais; acho que, por vezes, ela chegava até a fantasiar. Mas eu nunca me importei. Pelo contrário, ela sempre fez meu mundo parecer mais importante, mais interessante, mais enigmático, mais profundo, mais misterioso. Ela não só me compreendia, mas também me desafiava, me inspirava.

Ás vezes eu passava em frente à Tia Juliana e a ficava observando com o canto do meu olho. Eu sabia que ela estava me observando, e eu ficava tentando a observar na contra-mão do caminho que ela usava para me alcançar e decifrar.

Eu nunca soube se Tia Juliana queria me descobrir ou me reinventar. Eu nunca soube se ela estava interessada em mim, ou na pessoa que ela pensava que eu fosse. Não, eu nunca soube. Mas era na Tia Juliana em quem eu mais pensava todo dia em que eu acordava no meu quarto da cidade.


15 de janeiro de 2013

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