É incrível como a agitação do dia a dia, os prazos apertados, as responsabilidades, os deveres e o peso que muitas vezes nós mesmos colocamos sobre nossos ombros tem o poder de obscurecer e ofuscar nossa visão da vida. Esquecemos que temos alma, esquecemos que a vida é tão rara.
Parece que nossa vida depende de nossas realizações, “a gente espera do mundo, o mundo espera de nós” [1]. E de quando em quando descobrimos que só estávamos correndo atrás do vento. Mas, depois corremos de novo, atrás daquele que nunca alcançamos, do vento. Uma busca vã, sem sentido, vazia.
É, talvez por isso mesmo que muitas vezes nos sentimos ocos, secos, vazios. Mesmo depois de acumular alguns troféus, empoeirados pela estrada da vida. Mesmo depois de conseguirmos convencer as pessoas e a nós mesmos da nossa responsabilidade, dedicação, empenho.
A cortina tapa o céu azul lá de fora. Ouço teclados, mas o som não é música. Gente trabalhando. Vejo rostos preocupados. O ombro dói. Gente preocupada com o futuro, gente preocupada com o amanhã. Gente preocupada com hoje a noite. E será que a gente só queria um abraço?
No nosso peito pulsa vida. Tanta vida. Será que ainda vamos demorar muito para perceber? Será que deixaremos a vida ser ameaçada para dar valor a ela? Será que seguiremos ainda achando que as pessoas dormindo pelas calçadas fazem parte da paisagem de nosso caminho para o trabalho? Barateamos e vulgarizamos a vida e, conseqüentemente, todo ser vivo. Nossos valores estão invertidos.
Minha alma quer apreciar a leveza dos bailarinos, a sensibilidade do poeta, a criatividade dos músicos. Quero saber da ousadia do revolucionário, da voz do profeta, dos ouvidos que conseguem escutar “uma barriga roncando, uma mamãe chorando” [2]. Afinal, não escutamos pois fazemos "muito barulho por nada". Quero aprender da inocência da criança, do vigor da juventude, da sabedoria da velhice. Continuar acreditando nos suspiros apaixonados e nos amores desinteressados.
E a gente volta à rotina. De quando em quando pensamentos raros como este escapam pelas brechas e tomam de novo conta da mente. A gente repensa a vida e sonha em talvez um dia valoriza-la como se deve. “A gente quer ter voz ativa No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva” [3]. E os ombros ainda doem.
[1] Paciência - Composição: Lenine e Dudu Falcão
[2] Gilmarley Song - Composição: George Israel / Paula Toller
[3] Roda Viva - Composição Chico Buarque
“Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
A vida não para
Enquanto o tempo acelera e pede pressa
Eu me recuso faço hora vou na valsa
A vida é tão rara
Enquanto todo mundo espera a cura do mal
E a loucura finge que isso tudo é normal
Eu finjo ter paciência
O mundo vai girando cada vez mais veloz
A gente espera do mundo e o m
undo espera de nós
Um pouco mais de paciência
Será que é o tempo que lhe falta pra perceber
Será que temos esse tempo pra perder
E quem quer saber
A vida é tão rara (Tão rara)
Mesmo quando tudo pede u
m pouco mais de calma
Mesmo quando o corpo pede um pouco mais de alma
Eu sei, a vida não para(a vida não para não)
Será que é tempo que me falta pra perceber
Será que temos esse tempo pra perder
E quem quer saber
A vida é tão rara (tão rara)
Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
Eu sei, a vida não para(a vida não para não...a vida não para)”
(Paciência - Composição: Lenine e Dudu Falcão)
Bomba, avião, helicóptero
para ocupar território
e deixar ao deus-dará
outras tragédias não soam
outras tragédias não soam
barulho...barulho...
muito barulho por nada
por nada no futuro
vamos falar mais baixo
vamos parar pra escutar
uma barriga roncando
uma mamãe chorando
vamos ouvir a noite cair
e o sol ajudá-la a se levantar
bumbo, violão, pandeiro
para animar o auditório
e ir pra casa em paz e feliz
outra beleza não há
outra beleza não há
silêncio! silêncio!
façam silêncio
ouçam Gilmarley cantar
vamos falar mais baixo
vamos parar pra escutar
o bum-bum do tambor
um abacateiro em flor
vamos fugir da solidão
gandaia, realce, reggae e baião
outra beleza não há...
(Gilmarley Song - Composição: George Israel / Paula Toller)
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino prá lá ...
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira prá lá
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
A roda da saia mulata
Não quer mais rodar não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou
A gente toma a iniciativa
Viola na rua a cantar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a viola prá lá
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
O samba, a viola, a roseira
Que um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a saudade prá lá ...
(Roda Viva - Chico Buarque)