Friday, July 15, 2016

O pedestre colonizado


O pedestre foi colonizado.
A constatação é triste mas o pedestre foi colonizado. 
Vou chegando com minha bicicleta e parando para que o pedestre atravesse já que tem um pare enorme escrito no chão na minha frente. 
Faço contato visual com o pedestre para lhe dar garantias que o vi
O pedestre fica imóvel como alguém que foi domesticado 
É então que paro a bicicleta e dou sinal para que ele atravesse
Ele olha agradecido e me dá um sorriso colonizado
Como se eu estivesse fazendo um favor ou agrado
Me dá tristeza
Sou também pedestre num trânsito colonizador
Sou ciclista num trânsito colonizador




Sunday, July 10, 2016

Na dúvida...





Eu sou levemente inclinado à esquerda. Hoje em dia isso é problema.
Queria eu mesmo ser todo de esquerda. Tamanho desprendimento já não tenho.
E meu caviar também não deixa.

O meu ouvido enviesa para esquerda, e nem dá pra negar
Ele tem bastante opinião
É dono da razão

Vai ouvindo, ponderando, esquerdalizando
E aquele rolezinho? Respeito com a molecada
E as ciclovias de São Paulo? Devia ser tudo ciclovia
É viado, quer ser mulher? Educação de gênero nas escolas
Defesa da familia? A minha, a sua, e a de todo mundo 
Pivete na cadeia? Eu acredito na educação
A USP mais preta? É reparo histórico minha gente
Vamos ensinar a pescar? É claro, mas hoje a gente ainda tem que comer
Cambada de vagabundo fazendo greve? É luta, mesmo com o perigo do camburão

E na dúvida? Esquerda, meu amigo
Vai na fé, meu irmão

A política dá tristeza, a esquerda da política também
Mas os companheiros dão alegria
São da luta e da revolução
de mentes, coração
e do prato do João

O gosto amargo da política não vai me amargar
Tem gente que me dá a mão
tem gente que brilha os meus olhos

A política é amarga, 
A companhia da jornada é doce

Doce como a emoção da Sabatella 
Doce igual a poesia do Chico Buarque
Doce como a militância da Leandra Leal
Doce igual a esperança da Marieta Severo
Doce como o desabafo do Wagner Moura

Sossego de ver que há resistência
Sossego de ver que existe pensamento crítico

Esperança de que a luta jamais acabe


Ribeirão Preto, 11 de abril de 2016

Naquela noite


Meus olhos estavam tão pesados quando ouvi seus passos entrarem no salão. De maneira solene ela caminhou pelo corredor principal com os olhos fixos no caixão. Já havia muito tempo que não a víamos, mas não havia como confundi-la. Seus longos cabelos escorriam pelo seu ombro direito, e seus punhos balançavam cerrados como se com eles ela pudesse aniquilar toda a injustiça do mundo em um só golpe. Por um segundo eu pude sentir a respiração de todos nossos amigos pausarem, em um misto de espanto e alívio. Desde que a levaram inúmeros boatos haviam se espalhado sobre o seu paradeiro. Nunca tínhamos deixado de procurá-la, mas todos sabíamos do destino comum dos desaparecidos. Era como se as autoridades rissem por massacrarmos, um a um, com a incerteza do triste fim e a promessa que seríamos os próximos. A cada dia nos sentíamos mais impotentes. Mais vazios com a ausência daqueles que nos tomavam.


De maneira irônica, era naquela noite de tristeza que a história nos afagava pela primeira vez em anos. Quanto mais ela se aproximava mais meu coração se aquecia. Não havia como não notar que seus passos eram de um corpo quebrado. Mas seus olhos nunca me pareceram tão fortes.