Clarice Lispector termina
um de meus textos favoritos, “Se eu fosse eu”, com a frase “Não,
acho que já estou de algum modo adivinhando, porque me senti
sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do
que é grande demais”.
Você
já sentiu uma estranha sensação na barriga ou ver de relance, no
seu imaginário ou visão de mundo, uma outra dimensão da realidade
que parece ser grande demais? Aquela sensação de contemplação por
algo que você nem entende, nem dimensiona, mas que por segundos
parece fazer sentido e bane alguns dos seus medos mais escuros?
Não
sei ao certo se essa é uma sensação estranha ou comum, mas por
vezes uma perspectiva se abre diante de mim que me faz respirar
diferente por alguns segundos. É como se a chave de algum cadeado me
tivesse sido dada, ou mesmo que eu percebesse que o cadeado esteve
aberto o tempo todo. O meu rosto se ilumina, e os meus olhos brilham.
Mas então vêm a “Roda viva” do Chico ou eu vejo as sombras da
caverna de Platão, e os fatos continuam, os vícios continuam, e as
mazelas também. Mas de alguma forma, a realidade foi ligeiramente
abalada. A experiência do grande demais existiu.
Tendo
sido criado numa cultura machista, hetero-normativa, e que cultua o
masculino em detrimento do feminino, eu padeço dos mesmos males de
todos os meus iguais que foram expostos às mesmas condições. É
certo que cada um de nós reage de maneira diferente àquilo que nos
é doutrinado, mas também considero praticamente impossível
crescer/florescer em uma sociedade que é, em muitos aspectos,
doente, e não padecer com ela.
Basta
dar uma passeada por redes sociais e aplicativos e voltados ao
público gay masculino para perceber como o preconceito, a fobia do
feminino, e o culto ao masculino estão impregnados lá. Em tais
meios, “afeminado” é a palavra chave. Ou melhor, a palavra non
grata. Você pode passar por perfis e mais perfis e vai perceber que
grande parte deles ou vai dizer explicitamente que não curte
afeminados, ou vai dizer que curte “machos”.
Mas
qual o problema disso? Gostos são gostos. Gosto não se discute. É
questão de preferência. É questão de escolha. Não podemos nos
forçar a nos sentir atraído por algo que não nos atrai.
Sim,
gostos são gostos. E mais um “sim” para todas as afirmações
que se seguem no parágrafo anterior.
Mas
acho que a conversa é um pouco mais profunda e sensível. A
predominância dessa aversão ao feminino (nos infinitos graus do
espectro) seria então algo natural? Seria ela uma livre expressão
da preferência individual de cada um de nós? Seria ingénuo
acreditar que essa pergunta possa receber uma resposta afirmativa.
Vivendo em sociedade, somos diariamente expostos a pensamentos,
preconceitos, regras, vícios, ideologias e doutrinas. Somos expostos
a tudo isso desde nossos primeiros dias de vida. Somos expostos a
tudo isso muitos antes mesmo de nos percebermos como indivíduos
dotados de vontade própria. E, querendo admitir ou não, somos sim,
em parte, um produto de todo esse processo. Em um outro contexto ou
tempo, perceberíamos a realidade de uma maneira bem diferente.
Essa
constatação é um passo essencial para começarmos a repensar os padrões, doutrinas e valores que nos cercam. Bem como, os
padrões, doutrinas e valores que ajudamos a transmitir e perpeturar.
Mas
do que adianta isso? Nossos gostos vão continuar sendo os mesmos,
não? Provavelmente sim. Todos os nossos mecanismos e raciocínios
interiores estão fortemente enraizados e constituem parte de nossas
práticas e percepções, do nosso prazer, do nosso desejo.
Então
por que estou gastando o seu tempo e o meu escrevendo sobre isso?
A
constatação do problema é o primeiro passo para que possamos abrir
uma fresta para mudanças ocorrerem. Mesmo que nossos vícios estejam
tão enraizados que jamais nos livremos deles, isso não nos livra da
responsabilidade de tratar a questão, com clareza e sem pudores.
Mas
existe um outro tipo de constatação, e é essa que é grande
demais.
Por
vezes, num piscar de olhos, a beleza do feminino se revela na minha
frente. É uma manifestação do que eu costumo também de chamar de
“terceiro sexo”, quando o feminino da a graça no masculino . A
beleza vem de tantas maneiras: num clipe, numa música, num programa
de TV, num trejeito, numa roupa, num movimento. Não há como
explicar o que é bonito demais. Só sei que é feminino, afeminado,
“afetado”, e lindo.
E,
mesmo embora a realidade me jogue de volta para os “meus gostos
pessoais”, a experiência e a existência do grande demais me
apontam para uma nova possibilidade. E só isso já é digno de
celebração.
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