Thursday, November 20, 2014

A rolinha, os ovos, e a cebola


A cebola que insistiu em crescer na minha geladeira
A cebola que eu coloquei na terra para crescer quentinha
A rolinha que começou um ninho na minha janela
A vistoria do apartamento que não vai permitir um ninho na janela
O princípio de ninho que eu joguei pela janela
A cebola que eu deixei repousar na janela
A cebola que virou o ninho da rolinha
A rolinha que não sabe da vistoria
A vida que está crescendo dentro dos ovos
A cebola que vai morrendo debaixo dos ovos
A vida morrendo, a vida chegando
A rolinha, os ovos, a cebola
E  o ninho que há de passar na vistoria






Grande demais

O que é grande demais: 

sobre o masculino, o feminino, e nossa sociedade




Clarice Lispector termina um de meus textos favoritos, “Se eu fosse eu”, com a frase “Não, acho que já estou de algum modo adivinhando, porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais”.

Você já sentiu uma estranha sensação na barriga ou ver de relance, no seu imaginário ou visão de mundo, uma outra dimensão da realidade que parece ser grande demais? Aquela sensação de contemplação por algo que você nem entende, nem dimensiona, mas que por segundos parece fazer sentido e bane alguns dos seus medos mais escuros?

Não sei ao certo se essa é uma sensação estranha ou comum, mas por vezes uma perspectiva se abre diante de mim que me faz respirar diferente por alguns segundos. É como se a chave de algum cadeado me tivesse sido dada, ou mesmo que eu percebesse que o cadeado esteve aberto o tempo todo. O meu rosto se ilumina, e os meus olhos brilham. Mas então vêm a “Roda viva” do Chico ou eu vejo as sombras da caverna de Platão, e os fatos continuam, os vícios continuam, e as mazelas também. Mas de alguma forma, a realidade foi ligeiramente abalada. A experiência do grande demais existiu.

Tendo sido criado numa cultura machista, hetero-normativa, e que cultua o masculino em detrimento do feminino, eu padeço dos mesmos males de todos os meus iguais que foram expostos às mesmas condições. É certo que cada um de nós reage de maneira diferente àquilo que nos é doutrinado, mas também considero praticamente impossível crescer/florescer em uma sociedade que é, em muitos aspectos, doente, e não padecer com ela.

Basta dar uma passeada por redes sociais e aplicativos e voltados ao público gay masculino para perceber como o preconceito, a fobia do feminino, e o culto ao masculino estão impregnados lá. Em tais meios, “afeminado” é a palavra chave. Ou melhor, a palavra non grata. Você pode passar por perfis e mais perfis e vai perceber que grande parte deles ou vai dizer explicitamente que não curte afeminados, ou vai dizer que curte “machos”.

Mas qual o problema disso? Gostos são gostos. Gosto não se discute. É questão de preferência. É questão de escolha. Não podemos nos forçar a nos sentir atraído por algo que não nos atrai.
Sim, gostos são gostos. E mais um “sim” para todas as afirmações que se seguem no parágrafo anterior.

Mas acho que a conversa é um pouco mais profunda e sensível. A predominância dessa aversão ao feminino (nos infinitos graus do espectro) seria então algo natural? Seria ela uma livre expressão da preferência individual de cada um de nós? Seria ingénuo acreditar que essa pergunta possa receber uma resposta afirmativa. Vivendo em sociedade, somos diariamente expostos a pensamentos, preconceitos, regras, vícios, ideologias e doutrinas. Somos expostos a tudo isso desde nossos primeiros dias de vida. Somos expostos a tudo isso muitos antes mesmo de nos percebermos como indivíduos dotados de vontade própria. E, querendo admitir ou não, somos sim, em parte, um produto de todo esse processo. Em um outro contexto ou tempo, perceberíamos a realidade de uma maneira bem diferente.

Essa constatação é um passo essencial para começarmos a repensar os padrões, doutrinas e valores que nos cercam. Bem como, os padrões, doutrinas e valores que ajudamos a transmitir e perpeturar.

Mas do que adianta isso? Nossos gostos vão continuar sendo os mesmos, não? Provavelmente sim. Todos os nossos mecanismos e raciocínios interiores estão fortemente enraizados e constituem parte de nossas práticas e percepções, do nosso prazer, do nosso desejo.

Então por que estou gastando o seu tempo e o meu escrevendo sobre isso?

A constatação do problema é o primeiro passo para que possamos abrir uma fresta para mudanças ocorrerem. Mesmo que nossos vícios estejam tão enraizados que jamais nos livremos deles, isso não nos livra da responsabilidade de tratar a questão, com clareza e sem pudores.

Mas existe um outro tipo de constatação, e é essa que é grande demais.
Por vezes, num piscar de olhos, a beleza do feminino se revela na minha frente. É uma manifestação do que eu costumo também de chamar de “terceiro sexo”, quando o feminino da a graça no masculino . A beleza vem de tantas maneiras: num clipe, numa música, num programa de TV, num trejeito, numa roupa, num movimento. Não há como explicar o que é bonito demais. Só sei que é feminino, afeminado, “afetado”, e lindo.

E, mesmo embora a realidade me jogue de volta para os “meus gostos pessoais”, a experiência e a existência do grande demais me apontam para uma nova possibilidade. E só isso já é digno de celebração.