Onde estão os bandidos?
Sob a ótica e desafio do extrapolamento
Renato Russo e sua legião registraram na música “Quase sem querer” a seguinte frase “Já não sou mais tão criança... a ponto de saber tudo”. Fico a pensar sobre coisas que mudaram em meu interior por não ser mais tão criança e outras que também mudaram pelo simples fato de conservar a criança no meu interior. Trazendo a mente algumas coisas que tenho refletido no último ano, posso dizer “Já não sou mais tão criança.... a ponto de buscar vilões a minha volta”, ou melhor “Tento a cada dia não ser tão criança... a ponto de buscar vilões a minha volta”.
Lembro-me da primeira vez que me deparei com uma dinâmica diferente da conhecida guerra entre o bem e o mal dos desenhos animados e das histórias de super-heróis. Quando criança, fui até a casa de um amigo uns dois anos mais velho que eu. Como ele estava assistindo a um filme de guerra, logo perguntei “Quem é o do mal?”. Se eu iria assistir a um filme de guerra, era primordial saber quem era do bem e quem era do mal. Afinal para quem eu iria torcer? Por isso, naquela época, não fiquei muito satisfeito com a resposta de meu amigo de que não existia essa coisa de “do bem ou do mal” numa guerra. Embora naquele filme, como comumente ocorre nas produções cinematográficas, o bem e o mal estivessem bem destacados e delineados.
Embora distinguir o mundo entre coisas “do bem ou do mal” pareça coisa de criança, isso é bem comum no nosso mundo dito adulto e maduro. Essa vontade rotular as coisas entre bem e mal perpassa nossos sentimentos, principalmente quando há uma tensão envolvida. Afinal, alguém precisa ser o responsável, não é?!?
Talvez um bom exercício para verificar nosso olhar imparcial sobre os fatos é assistir aos filmes “A Conquista da Honra” e “Cartas de Iwo Jima”, que retratam de perspectivas diferentes o ataque americano à ilha de Iwo Jima, durante a Segunda Guerra Mundial. Enquanto assistia ao filme “A Conquista da Honra”, literalmente torcia pela vitória do americanos e para que os personagens do filme se mantivessem a salvo. Em seguida, no outro filme, torcia pela resistência dos japoneses com o mesmo afinco ou mais do que eu tinha torcido pelos americanos no filme anterior. Os dois filmes simplesmente me fizeram me posicionar de formas diferentes a respeito de uma mesma guerra. Isso é facilmente compreensível quando levamos em conta de que, durante cada um dos filmes, nos afeiçoamos aos personagens e eles extrapolam aos rótulos de suas nacionalidades. Dessa forma, esse sentimento e simpatia para com os personagens nos fazem torcer por eles.
Talvez esse seja nosso grande desafio no mundo real. Extrapolar os preconceitos, os rótulos e as pressuposições sobrepostas sobre cada pessoa, e descobrir o valor inerente de cada um. Logicamente não nos daremos bem com todo mundo e teremos simpatia por todos os que nos rodeiam, mas ao menos deveremos estar sensíveis ao choro que se esconde por detrás de uma atitude aparentemente dura, o medo por detrás da mentira, o desencanto e descontentamento por detrás da frieza implacável. Afinal, não vivemos em um mundo de mocinhos e vilões.
Mais do que a dinâmica de dois países em guerra ou da relação entre carrasco e explorado, tensões do tipo “quem está com a razão X quem não está” permeiam nossos relacionamentos, sejam eles familiares, amorosos, profissionais, religiosos, etc. Dessa forma, o “desafio do extrapolamento” é muito maior e muito mais profundo. Não sejamos ingênuos em ignorar os dois lados da história. Ou melhor, como aprendi com uma amiga jornalista nesse final de semana, não existem apenas dois lados da história. Toda história tem múltiplos lados. Assim, termino esse POST com o poema “Rejeição” de Carlos Drummond de Andrade, que questiona um pouco essa questão de se posicionar apenas sob a perspectiva de um lado da história.
Rejeição
Não sei o que tem meu primo
que não me olha de frente.
Se passo por sua porta,
é como se não me visse:
parece que está na Espanha
e eu, velhamente, em Minas.
Até me virando a cara,
a cara é de zombaria.
Se ele pensa que é mais forte
e que pode me bater,
diga logo, vamos ver
o que a tapa se resolve.
A gente briga no beco,
longe dos pais e dos tios,
mas briga de decidir
essa implicância calada.
Qual dos dois, mais importante:
o ramo dele, o meu ramo?
O pai mais rico, quem tem?
Qual o mais inteligente,
eu ou ele, lá na escola?
Namorada mais jeitosa,
é a minha ou é a dele?
Tudo isso liquidaremos
a pescoção, calçapé,
um dia desses, na certa.
Sem motivo, sem aviso,
meu primo declara guerra,
essa guerrinha escondida,
de mim, mais ninguém, sabida.
Pode pois uma família
ser assim tão complicada
que nós dois nos detestamos
por sermos do mesmo sangue?
Nossas paredes internas
são forradas de aversão?
Será que o que eu penso dele
ele é que pensa de mim
e me olha atravessado
porque vê na minha cara
o vinco de zombaria
e um sentimento de força,
vontade de bater nele?
Meu Deus, serei o meu primo,
e a mesma coisa sentimos
como se a sentisse o outro?
(Carlos Drummond de Andrade)
2 comments:
hi, honey
your words helped me...Maybe I am a child that's looking for heroes and villains inside me...
love u (forever)
Cara, eu amei essa dupla de filmes por causa disso, são excelentes...
Acho que é um grande amadurecimento passar a enxergar os outros de uma perspectiva diferente da sua própria...
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