Friday, September 21, 2018

Muito além



Muito além

(Roda de Milton da Costa, pintura a óleo de 1942)


O muito além é uma teimosia nossa, bonita e destemida, que reluta em abandonar o que passou. Em deixar morrer o que já partiu. O que deixou saudade. O que deixou rancor. O que foi, mas que também ainda é. O muito além é uma era de solos, de no máximo um feat. É a era que pretende se entender, mas nem de longe alcança nossas vozes. É a era que nos deixa do lado de fora dos universos particulares, com um quadro que promete lembrar o que já não mais é. O muito além é a reconciliação sem o feijão com arroz para a ação. É a era das mãos dos pares que se juntam, das novas construções, e das reinvenções. É a era de dançar colado e falar ao pé do ouvido, das nossas memórias da roda de samba já vazia.


Mogi Mirim, 21 de setembro de 2018

Thursday, August 23, 2018

Na cadeira


Sentado em um canto da rodoviária eu vejo um menino negro, de uns 15 anos, camiseta, calça jeans, chinelos de dedo, uma sacola de papel com livros dentro. De repente um homem de uns 35 anos, boné, camiseta polo, e calça jeans aproxima-se falando no celular. Ele anda em direção ao menino, sem tirar a atenção da conversa no celular. Ele para em frente ao menino, interrompe a ligação telefônica e diz, sem alteração de voz, com um ar automático de quem vem dar instruções: sente-se em uma das cadeiras no outro lado do saguão. O menino não argumenta. Imediatamente obedece a "ordem", levanta-se e se dirige ao setor de cadeiras. O homem continua falando no celular e para em frente ao banheiro. Eu me dirijo a ele e pergunto: senhor, por favor, você trabalha aqui? Ele responde: não. E continua a conversa no telefone.

Mato Grosso

Estou preocupado com o Mato Grosso
Hoje, ao ir ao banheiro da academia, escutei um rapaz de uns 35 anos conversando ao telefone. Ele estava inconformado.
Ele dizia que tinha ido à missa na igreja aqui em Ribeirão Preto e que quando o padre começou a missa, ele logo percebeu que o padre parecia uma moça. Que aquilo não podia. Que aquilo era um desrespeito.
Disse que no Mato Grosso os padres são todos mulherengos. Eles catam um monte de mulher.
Mas o padre da missa que ele foi parecia uma moça. Como podia? Que desrespeito! Jesus não era assim. No Mato Grosso não é assim.

Buzinas


Hoje passei de bicicleta em frente a um motel de beira de estrada. Haviam duas mulheres sentadas na entrada do motel e uma terceira mulher em pé mais a frente, perto da saída para a pista. Logo após passar de bicicleta pela terceira mulher ouvi quando um carro buzinou ao passar por ela. O motorista não buzinou como um sinal que iria parar para oferecer ou pedir algo à mulher. Ele apenas buzinou e seguiu. Foi então que me lembrei que algumas pessoas são "buzináveis" ou "mexiveis", apenas por serem ou estarem. É buzina para o que se acha bonito. É buzina para o que se acha ridículo. É buzina para o que incomoda. É buzina para o que é diferente. É buzina pela roupa curta. É buzina para as gays dando pinta. É buzina para as meninas beijando. É buzina para mulher. É buzina para o que lembra mulher.

Dialogs in Montreal


At the hostel bar a friendly and very talkative German guy shows us another German playing pool.
"You see that guy with the blue shirt. He was talking a lot of bullshit yesterday. He is a fucking racist."
A Swiss girl and I try to look in the direction of the pool table as casually as possible. The guy continues talking to make his point.
"I don't understand how people are like that. He is half German and half Italian. And his parents lived in Porto Rico. Who is he to say anything anyway?"
...

Ilusões - Parte 1

Ilusões - Parte 1



Personagem central da minha própria história
nem herói, nem anti-herói
Contudo uma boa intenção
uma moral intencionada
um bom coração

Mas não são todos os personagens centrais assim?
Na sua própria perspectiva dos fatos?

Um espírito elevado,
um respeito pelo passado,
transgressões perdoáveis pelo poder do instinto
uma compreensão dos fatos
um entendimento das pessoas

Mas não somos todos elevados
no nossa própria luz do mundo?

Uma outra frequência,
uma nova visão
um novo caminho
a resistência à mesmisse
o andar contra a corrente

Não temos todos um quê de Cervantes,
Quixote, e uma pança?

Saturday, May 19, 2018

Só lamento





Um minuto de silêncio
por gentileza
por toda frieza e toda avareza
Um momento de silêncio
pela nossa pobreza
e o culto à beleza

Um minuto de silêncio
por favor
por toda dor e falta de calor
Um momento de silêncio
pelo falso clamor
e as juras de amor

Um minuto de silêncio
seria muito?
pelo ódio gratuito e todo descuido
Um momento de silêncio
pelo amor fluido
e seu bom intuito

Um minuto de silêncio
você sabe o por quê?
É por você e seu sorriso blasé
Um momento de silêncio
pela falsa mercê
e seu vocabulário clichê

Um minuto
Um silêncio
Um momento

Só lamento!



(Mogi Mirim, 20 de maio de 2018)

Sunday, May 06, 2018

Me encontro





Ás vezes eu danço, flutuo
Rodo minha saia
Num movimento místico


Sinto meu corpo em plenitude
Arrepiado, ouriçado, e pulsante

De tão terreno
Me desapegado das questões terrenas

Sinto o ar, o pulsar

Livre
Leve
Pleno

Ás vezes me pego como qualquer um
Com sede
Fome
Desejo

Gasto meu batom
No tempo de um cigarro

Livre
Leve
Leviano

Eu.

E então me encontro.
Na minha pequenez
E na minha grandeza.


(Jacutinga, 06 de maio de 2018)

Saturday, March 17, 2018

O que o tempo deixou?



O que o tempo deixou?




  • O tempo deixou um tanto de amor
    e quando sobra rancor
    eu rezo um pouquinho

    O tempo deixou o que também passou
    e quando penso em você
    te cuido um pouquinho

    O tempo deixou muitos seus pedacinhos
    e quando olho de perto
    me vejo inteirinho

    O tempo deixou novas formas de amar
    e quando me pego a sonhar
    já avancei um tiquinho

    O tempo deixou o que deu pra ficar
    e quando te vejo sorrindo
    me vem é carinho

    Eduardo Costa, Ribeirão Preto, 17 de março de 2018
    (Do tapete da sala)


Fonte imagem: https://www.letras.mus.br/rayssa-ravel/389442/

Vi





 Vi 


Meu peito precisa falar

Minha garganta quer é mais gritar
O mundo gira devagar
E meus olhos não querem piscar



Vi uma criança andando pela rua
Pés descalços, peito ao vento
Seus olhos tinham de um tudo
E um sorriso largado ao pisar na poça d'água



Vi uma senhora a cuidar dos filhos
Seu olhar de tigresa protegia a cria
Parecia esperar por alguém
Volta e meia dava um tapa em uma das crianças



Vi o encanto do rapaz cabelos ao vento
Um jeito andrógeno bonito de se ver
Seus olhos brilhavam no futuro
Suas pernas trançavam amortecidas pra casa



Vi minha mão tremendo devagarinho
Meu peito arrepiado ao ouvir o tamborim
Vi no meu rosto o tempo que passou
E no peito todo amor que ele me deixou



Vi homens, mulheres, moços, e velhos
Sorrisos, lágrimas, a esperança, e a lida
Meu peito quer gritar
Meus olhos às vezes só fazem piscar



Eduardo Costa, 15 de março de 2018
(Circular Bebedouro->RP)


Fonte imagem: http://metodoselfhealing.blogspot.com.br/2012/10/tecnicas-para-piscar-mais-e-melhor.html


Monday, January 23, 2017

Vento Tempo

Vento Tempo

O tempo trouxe um vento
que varreu com alento
seus vicios desatentos
todos pra longe de mim

Hoje guardo com doçura
saudosismo e ternura
a sua figura mais pura
bem viva dentro de mim


(Figura fonte: https://secure.static.tumblr.com/f47db921d5f9b6969f098031cca7ebc1/bpjoubi/vhen9u9oi/tumblr_static_dente-de-leao-1280x7681.jpg)


Saturday, December 31, 2016

A natureza das coisas

A Natureza das Coisas



Você já parou para pensar na natureza das coisas?
Na natureza de nosso mundo?
Dos nossos pequenos truques, vicios, cenários, e roteiros?

Os que geralmente pensam sobre essas coisas são chamados de lunáticos
Outros, ditos sensíveis demais, são relegados à melancolia
Alguns transformam o universo em versos e rimas
Há também os que bebem o mundo até o último gole
E os que piedosamente envolvem a realidade com rezas e cantos

Mas você já parou para pensar na natureza das coisas?

Tome cuidado, no entanto
Não faça alarde
São modelos defeituosos que o fazem

Você já parou para pensar na natureza do seu mundo?

Cada um de nós tem a sua narrativa
Personagem central,
aventurado ou não,
com roteiro, história, cartas marcadas,
e um tanto de improviso

Quanto maior a arrogância,
maior a sensação do improviso
E não há nada mais suculento que o improviso

O roteiro nos empodera
Os demais personagens nos encorajam
A segurança do script acoberta nossos medos,
os mais profundos,
nos faz míopes, distraídos, altivos
com tudo que desarmoniza com a nossa verdade adquirida

Mas você já parou para pensar na natureza dessas coisas?

Somos mais dependentes um dos outros do que gostaríamos
Nossa força, segurança, auto-estima, independência
têm mais alicerces em circustancias,
do que ousamos imaginar

Ontem me peguei temperando a minha sopa com um pouco de insegurança
e pitadas de necessidade de aceitação
São desses temperos que usamos sem pensar
Mas no meu caso, com tudo que aprendi,
pensei ter tais potes na última pratelereira da dispensa

Quem ousou colocá-los bem em cima do meu fogão?

Eu que sempre tive a resposta na ponta da língua
Me faltaram as palavras quando levaram todas as minhas roupas

Eu que sempre cuidei de cada flor
Me joguei ardentemente sobre os girassóis
No meu gozo de amor

Eu que sigo muita a minha opnião
Li e reli o meu discurso
Para saber como minhas palavras seriam recebidas

Onde é seu lugar comum? Você já parou pra pensar quem você realmente é?

Pensamentos são gratuitos
A maior parte deles vãos

Nem tudo importa

E a chave do jogo provavelmente não o tirará desta prisão

Mas é a esperança para escolhas
mais coerentes com a canção que você pretende dançar

Você ja parou para pensar?

Friday, July 15, 2016

O pedestre colonizado


O pedestre foi colonizado.
A constatação é triste mas o pedestre foi colonizado. 
Vou chegando com minha bicicleta e parando para que o pedestre atravesse já que tem um pare enorme escrito no chão na minha frente. 
Faço contato visual com o pedestre para lhe dar garantias que o vi
O pedestre fica imóvel como alguém que foi domesticado 
É então que paro a bicicleta e dou sinal para que ele atravesse
Ele olha agradecido e me dá um sorriso colonizado
Como se eu estivesse fazendo um favor ou agrado
Me dá tristeza
Sou também pedestre num trânsito colonizador
Sou ciclista num trânsito colonizador




Sunday, July 10, 2016

Na dúvida...





Eu sou levemente inclinado à esquerda. Hoje em dia isso é problema.
Queria eu mesmo ser todo de esquerda. Tamanho desprendimento já não tenho.
E meu caviar também não deixa.

O meu ouvido enviesa para esquerda, e nem dá pra negar
Ele tem bastante opinião
É dono da razão

Vai ouvindo, ponderando, esquerdalizando
E aquele rolezinho? Respeito com a molecada
E as ciclovias de São Paulo? Devia ser tudo ciclovia
É viado, quer ser mulher? Educação de gênero nas escolas
Defesa da familia? A minha, a sua, e a de todo mundo 
Pivete na cadeia? Eu acredito na educação
A USP mais preta? É reparo histórico minha gente
Vamos ensinar a pescar? É claro, mas hoje a gente ainda tem que comer
Cambada de vagabundo fazendo greve? É luta, mesmo com o perigo do camburão

E na dúvida? Esquerda, meu amigo
Vai na fé, meu irmão

A política dá tristeza, a esquerda da política também
Mas os companheiros dão alegria
São da luta e da revolução
de mentes, coração
e do prato do João

O gosto amargo da política não vai me amargar
Tem gente que me dá a mão
tem gente que brilha os meus olhos

A política é amarga, 
A companhia da jornada é doce

Doce como a emoção da Sabatella 
Doce igual a poesia do Chico Buarque
Doce como a militância da Leandra Leal
Doce igual a esperança da Marieta Severo
Doce como o desabafo do Wagner Moura

Sossego de ver que há resistência
Sossego de ver que existe pensamento crítico

Esperança de que a luta jamais acabe


Ribeirão Preto, 11 de abril de 2016