Há
duas semanas eu adentrei o restaurante universitário enquanto ainda
haviam poucas pessoas no local. Como eu estava sozinho, eu
intencionalmente me sentei próximo a um grupo de cerca de dez
estudantes que tinham chegado no restaurante junto comigo. Havia algo
naquele grupo que tinha me chamado a atenção, por isso resolvi
observá-lo um pouco mais de perto.
Num
grupo misto de meninos e meninas, havia um estudante que parecia
centralizar a atenção e conduzir de forma espontânea a dinâmica
da conversa no grupo. O menino que aparentava uns 19 anos de idade,
parecia bem seguro de si mesmo, e um leve ar afeminado me levou a
deduzir que ele provavelmente fosse gay. No meio dessa minha
indiscreta especulação, a minha observação do grupo foi perdendo
progressivamente a minha atenção e comecei a devanear nos meus
pensamentos.
Independente
de minha suposição sobre a sexualidade daquele estudante, o que
realmente tomou o foco da minha atenção e reflexão foi o fato de
eu ainda achar digno de atenção o fato de homens/meninos
gays assumirem posição central e de liderança espontânea em um
grupo predominantemente heterossexual. Eu tive um sentimento parecido
quando eu conheci um rapaz abertamente gay que tinha sido o
presidente de uma das maiores organizações estudantis em Leuven.
Esse
sentimento, que eu defino como estranhamento da realidade, não me
agrada, pois ele revela que eu ainda estou num processo de
desconstrução da imagem de uma pessoa homossexual e sua interação
no seu meio. Imagem essa que assimilei durante a minha infância,
adolescência e início de juventude, e que durante muito tempo
carregou uma conotação negativa. Como essa imagem negativa sempre
esteve muito mais vinculada a homens gays do que a lésbicas, o foco
da minha reflexão tende, em certas partes, mais para o gênero
masculino.
Durante
muito tempo eu associei as palavras gay e homossexual à noção de
inferioridade, de marginalização, de não adequação, de
insulto, de motivo vexatório. E foi somente depois de muito tempo e
vivência que eu comecei a desconstruir cada uma dessas noções
negativas. Esse processo começou já no Brasil, quando eu conheci
alguns homossexuais me mostraram que a minha percepção da realidade
estava carregada de preconceitos e pontos para ser repensados. Mas
foi depois de minha mudança para a Bélgica que esse processo de
desconstrução (ou reconstrução) se acelerou. Depois de ver como a
questão da homossexualidade é tratada de maneira mais leve e
natural pela maioria dos grupos que eu conheci aqui, eu comecei a
construir uma nova imagem de uma pessoa homossexual: uma imagem que
não mais usa a orientação sexual como fator discriminatório,
separador ou vexatório. Nessa nova imagem, a questão da orientação
sexual é só mais um elemento que marca a diversidade de um
indivíduo em um grupo e por isso não é motivo para que tal
indivíduo não seja aceito de forma integral pelo grupo.
Entretanto,
o meu estranhamento narrado no começo do meu texto denuncia algumas
deficiências dessa minha nova imagem de uma pessoa homossexual. Com
a minha nova visão de mundo, eu encaro com muita naturalidade que
homossexuais sejam aceitos nos grupos em que fazem parte, mas ainda
olho com surpresa quando os mesmos se tornam líderes de tais grupos.
Não
quero dizer que não considere a posição de liderança legítima.
Na verdade, a constatação me alegra, e mostra que estamos vendo
constantes avanços da interação e contribuição de gays no seus
ambientes de trabalho e de envolvimento social. Mas confesso que eu
estaria muito mais feliz se a pergunta “ele é gay e conseguiu se
tornar representante de todos os estudantes?” nunca tivesse que se
passar na minha cabeça. E temo que essa pergunta ainda esconda
resquícios de um complexo de vira-lata.
NOTA ADICIONAL E EXPLICATIVA
No final do texto eu menciono a expressão "complexo de vira-lata". O que eu quero dizer é algo que eu também vejo claramente na relação Brasil x Europa, por exemplo. Ainda temos, enquanto povo brasileiro, um certo complexo de colonizados. Damos tratamento preferencial para estrangeiros (europeus/americanos) quando eles estão no Brasil, enquanto que fora do Brasil não somos tratados assim. Por que? Porque lá no fundo alguém nos ensinou que somos inferiores. Mas lógico que dizer que alguém é inferior não é algo que se diga, então acabamos incorporando isso de uma maneira muito sutil e desapercebida, de tal forma que juramos de pés juntos que somos todos iguais. Ainda assim damos tratamento preferencial a estrangeiros no Brasil. Por que somos hospitaleiros? Em partes, sim. Mas, em grande parte, porque ainda temos resquícios do complexo de vira-lata (do complexo de colonizados). Se fosse apenas pela hospitalidade, daríamos o mesmo tratamento preferencial a estrangeiros latino-americanos e africanos.
Voltando à questão homossexual. Depois de ter sido doutrinado que homossexuais estavam relegados à condição de marginalização, eu me dei feliz e satisfeito por alcançar um outro patamar na questão: o de ver de o quão mais justo, igualitário e livre de preconceitos é um grupo que aceita/reconhece a identidade homossexual de parte de seus integrantes. Mas minhas pretensões pararam aí. Não segui o raciocínio que, sendo igual, o membro homossexual poderia aspirar, como qualquer outro, por uma posição de líder, de figura central e representativa do grupo. Isso denuncia de que eu acharia normal homossexuais assumirem um enrustido complexo de vira-lata em grupos.
Meu raciocínio é que todos nós, homossexuais ou não, precisamos deconstruir e reconstruir (pre)conceitos. Isso é necessário para uma relação mais legítima e igualitária entre todos. Sem assumir nada. Sem complexos (seja ele de inferioridade, de superioridade, ou de vira-lata). Simplesmente deixar as pessoas serem quem elas são.
E nesse sentido isso se estende a todos: mulheres, negros, lésbicas, religiosos, ateus, etc. Se estende a todos os grupos que por determinada condição são/foram discriminadas/marginalizadas pela ditadura da maioria (ou do pensamento corrente).